Pléyade 36. Retóricas da incorporação: alimentação, dietética e canibalismo na filosofia e nas teorias sociais

Partindo da filosofia de Jacques Derrida, abrimos a questão da alimentação em filosofia assinalando que o seu tratamento se constitui como um trópico, o que faz do comer - como sempre um comer-alguma-coisa-outra - uma figura-chave de deslocação ou transposição semântica para remeter obliquamente para temas que são, de facto e de direito, os mais importantes para o discurso filosófico[1]. Em particular, referimo-nos à vida e servimos de base à edição e aos movimentos próprios da alma ou do espírito: o pensamento, a intencionalidade, a reflexão, a idealização e a relação, que têm sido frequentemente descritos sob a lógica da assimilação, da incorporação, ou mesmo da nutrição direta. As pistas de reflexão que se abrem a partir destas problemáticas englobam questões de ontologia, epistemologia e ética, num diálogo interdisciplinar efetivo no seio das ciências humanas e sociais.

Estas problemáticas abrangem um amplo espetro de autores, abordagens disciplinares e épocas textuais, que sintetizamos em: 1) a modernidade filosófica e a sua receção contemporânea, sobretudo o idealismo alemão e as teses sobre a relação especulativa sujeito-objeto, no quadro de uma análise do espiritual (Gestigkeit) envolvendo sobretudo Kant e Hegel e, criticamente, Nietzsche, Heidegger, Levinas, Derrida, Deleuze, entre outros; 2) a filosofia contemporânea em relação à psicanálise e seus legados, especialmente centrada no trabalho de luto, enquanto introjeção ou incorporação do objeto perdido no interior do ego, bem como questões referentes à oralidade (K. Abraham, S. Ferenczi, N. Abraham, M. Törok, M. Klein). Törok, M. Klein, entre outros); 3) temas de cruzamento com a antropologia cultural e os estudos da alimentação, sobretudo no que se refere à antropofagia e ao canibalismo, tendo em conta a produção teórica que permitem (C. Lévi-Strauss, M. Harris, M. Mauss, M. Métraux, E. Viveiros de Castro, etc.); 4) problemas estéticos relacionados com a antropofagia e o canibalismo, tendo em conta a produção teórica que permitem (C. Lévi-Strauss, M. Harris, M. Mauss, M. Métraux, E. Viveiros de Castro, etc.). 4) problemas estéticos relacionados com o sentido do gosto, na sua ampla utilização na filosofia da arte (Burke, Hume, Kant, Korsmeyer); 5) questões ético-políticas que vão desde a antiguidade até à atualidade, centradas nas ideias de dietética como base de uma ética do cuidado de si e na ideia de comensalidade como base do pensamento comunitário (Platão, Epicuro, Séneca, Agostinho, Brillat-Savarin, Feherbach, Fourier,  Nietzsche, Foucault, etc.), 

Desta forma, interessa-nos mostrar a possibilidade de uma retórica incorporativa como base da lógica especulativa dos discursos teóricos nas ciências humanas e sociais, mediada pelo uso da metáfora alimentar - mesmo canibal - como ferramenta de especulação. Em última análise, pretende-se contribuir para o desenvolvimento de matrizes teóricas que possibilitem diálogos interdisciplinares críticos e que liguem efetivamente a análise da linguagem aos temas da filosofia na sua relação com a vida, tanto na sua dimensão material-biológica como cultural e técnica.

Neste contexto de investigação, propõe-se o seguinte dossier monográfico: Retóricas da incorporação: alimentação, dietética e canibalismo na filosofia e nas teorias sociais.

Línguas: inglês, português e espanhol.

Data limite de submissão: 31 de março de 2025

Data de publicação: dezembro de 2025

As diretrizes editoriais para os autores podem ser consultadas no sítio Web da Pléyade e a receção das propostas de artigos será feita através da plataforma no seguinte link: https://www.revistapleyade.cl/index.php/OJS/about/submissions.

Editor convidado

Valeria Campos Salvaterra é doutorada em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica de Chile em codireção com a Universidad Complutense de Madrid. É professora e investigadora a tempo inteiro no Instituto de Filosofia da Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, Chile. É autora dos livros: “Violencia y fenomenología. Derrida entre Husserl y Levinas” (Santiago: Metales pesados, 2017), ”Transacciones peligrosas. Economias da violência em J. Derrida” (Santiago: Pólvora, 2018), ”Comenzar por el terror. Ensayos sobre filosofía y violencia” (Buenos Aires: Prometeo, 2020) e numerosos artigos sobre o problema da violência em sua relação com o discurso na filosofia contemporânea. Atualmente, alargou o seu campo de estudo ao uso de figuras retóricas associadas à alimentação em filosofia, o que lhe permitiu estudar problemas epistemológicos, ontológicos e éticos a partir de uma nova perspetiva. Neste contexto, publicou o livro “Pensar/comer. Una aproximación filosófica a la alimentación” (Barcelona: Herder, 2023).

[1] A tese de uma metaforicidade constitutiva do discurso filosófico foi moldada por Derrida na década de 1970, e descrita em termos da sua incorporação nos contemporâneos sobre Freud e a psicanálise (1967, 1977, 1980), sobre Kant (1975 e 1982) e sobre Hegel (1974), mas também com os escritos posteriores sobre Marx (1993) e, retrospetivamente, também com os primeiros dedicados a Heidegger (1964, 1967) e Levinas (1967 e 1996), entre outros. Esta questão é explicitamente retomada por Derrida no final dos anos 80, num seminário inédito que é o atual objeto da nossa investigação, dado nos Estados Unidos e em França entre 1989 e 1991: Manger l'autre: Politiques de l'amitié e Rhétoriques du cannibalisme. Ambos os seminários estão arquivados na coleção especial da biblioteca da Universidade da Califórnia Irvine (UCI) (http://hydra.humanities.uci.edu/derrida/uci.html), e fazem parte de uma série de cursos dados por Derrida no período mais longo de 1983 a 1991, que serviram de base para a edição e publicação do texto Poltiques de l'amitié em 1994.